Xenofobia no Wrestling: a construção cultural do inimigo

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Nada é mais real que a Luta-Livre. O esporte é um retrato do cotidiano, e reproduz aspectos da sociedade todos os dias, em cada uma de suas milhares de companhias.

Mas há quem pense que o Wrestling profissional se encontra afastado do jogo de xadrez político de dominação cultural, o que não é verdade. Luta-Livre também é uma ação política, e como todas as outras formas de ação, influencia na formação do cotidiano.

Às vezes de forma sutil e quase sempre caricata, a história do esporte auxilia na criação de mocinhos e vilões dentro e fora dos ringues. E, como forma de entretenimento, o Wrestling não falha na sua semiótica. A associação de símbolos com os personagens é importante para a síntese de uma cultura.

E, frequentemente, ela coloca o estrangeiro, ou seja, o outro, como o inimigo.

Os vilões da Luta-Livre e a geopolítica

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The Iron Sheik, um dos maiores vilões dos anos 80, precisou ser derrotado para que Hulk Hogan, representante estadunidense da companhia, se tornasse uma grande estrela – Reprodução/Documentário “The Sheik”

Com a sua criação datada na metade do século XIX, o Pro-Wrestling cresceu e ganhou notoriedade no século XX, se tornando um fenômeno de popularidade, assim como outros esportes contemporâneos.

Os últimos cem anos do segundo milênio presenciaram duas grandes guerras, e passou os seus últimos cinquenta anos com medo de um possível conflito nuclear entre os dois países mais poderosos do planeta.

Desde o assassinato de Francisco Ferdinando até o fim da União Soviética, muitos conflitos foram deflagrados. E, para cada um desses períodos, a cultura foi responsável por personificar algo que simbolizaria o outro, ou seja, o inimigo.

Ivan Drago, um boxeador russo e sem coração, matou Apollo Creed, vestido com as cores da bandeira americana, em pleno ringue. Rambo lutou sozinho contra tropas vietnamitas. E Hulk Hogan derrotou Iron Sheik, um lutador iraniano, para se tornar campeão mundial.

Porque a Luta-Livre, assim como o cinema, a música ou qualquer outra forma de cultura, também é um instrumento geopolítico. E ela precisa de um inimigo forte e destruidor para que o mocinho, defendendo a sua honra – e o seu país – supere esse desafio e mostre que, no fim, o bem sempre vence.

O problema é que esse discurso também carrega um teor xenofóbico que é difícil de ser dosado.

O discurso carregado de xenofobia que o Wrestling precisa superar

Vilões em 2013, Jack Swagger e Zeb Colter tinham um discurso nacionalista que, três anos depois, elegeu o presidente do país – Foto: WWE

De personagens que representavam o nazismo aos lutadores descendentes de povos do Oriente Médio, a Luta-Livre produziu vilões que representavam o inimigo do momento – falando da perspectiva estadunidense, é claro.

Quando não eram inimigos diretos no espectro político, os vilões também eram caracterizados de forma estereotipada. Sejam os mexicanos malandros ou os negros espertos e até envolvidos com magia poderiam ser alvos dos grandes mocinhos, os americanos.

Assim como em filmes ou outras formas de cultura, a construção de uma imagem do outro cria no imaginário do espectador, normalmente ocidental e desconhecedor do comportamento dos povos dos países fora do domínio socioeconômico global, a impressão de que eles estão reproduzidos exatamente da forma como são.

O estadunidense forte e bom, os outros maus e diferentes. Até mesmo quando a situação muda, e o americano é o vilão, o discurso é de criação de estereótipos. Quando Jack Swagger e Alberto Del Rio se enfrentaram na WrestleMania XXIX pelo World Heavyweight Champioship, o mexicano era o mocinho da situação.

A rivalidade, no entanto, foi baseada na retórica de Zeb Colter, manager de Swagger, que acreditava que Del Rio estaria roubando a posição que era de direito de um estadunidense, e que isso acontecia em cada esquina do país. Um discurso muito parecido com o do atual presidente dos Estados Unidos, Donald Trump.

Durante o primeiro evento da WWE na Arábia Saudita, o Greatest Royal Rumble, em 2018, Ariya e Shawn Daivari, estadunidenses que atuavam como personagens iranianos, foram vencidos por prospectos sauditas da empresa.

Um movimento normal colocar lutadores locais para serem ovacionados. Mas colocá-los para derrotar dois adversários do Irã, maior inimigo dos sauditas e em tensões diplomáticas naquela altura com os Estados Unidos, é uma demonstração de poder.

Isso, mesmo que não seja um ato feito por chefes de Estado, é uma demonstração geopolítica. E você achando que o Wrestling não está diretamente ligado com os movimentos políticos internacionais, bobinho…

Tensão entre Estados Unidos e Irã reacende o imaginário do inimigo

Estou escrevendo esse texto pois fui surpreendido com mais um ato de xenofobia nesta manhã de segunda-feira. Mustafa Ali, lutador querido pela plateia da WWE, um mocinho (por incrível que pareça) foi alvo de um meme onde a “piada” era sobre o lutador ser um possível terrorista e bombardear os espectadores no Royal Rumble.

O problema é que Ali, apesar de ter sido alvo devido aos seus traços semelhantes aos de povos do Oriente Médio, é americano. Sua descendência é paquistanesa, mas o lutador nasceu no mesmo país em que foi insultado por pessoas que acreditam que ele, e nenhum outro lutador, poderia cometer tal atitude.

Essa manifestação xenofóbica vem logo depois a escalada do conflito entre Irã e Estados Unidos, após o bombardeio feito pelos estadunidenses a uma cidade no Iraque, que matou o general Qasem Soleimani, um dos homens fortes do governo iraniano. Isso gerou um alarme de possível revide contra os estadunidenses, que gerou uma tensão em todo o globo.

Nesse caso, ninguém construiu o país da América do Norte como vilão. Mas Ali, que também é americano e provavelmente mais pacífico que muitos outros, foi colocado em uma “piada” como um possível terrorista. Isso também é a construção de um estereótipo. Isso, invariavelmente, é uma forma de geopolítica.

E o Wrestling, desde que o mundo é mundo, é um dos principais agentes na construção de um inimigo.

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