O mosca acha difícil falar do Undertaker. Talvez então eu não devesse falar como mosca.
Acontece que aí eu precisaria de falar como **** sobre Mark Calaway. E então eu poderia ignorar o personagem e fingir que a mística não interfere na minha decisão ética.
Eu poderia fingir que eu não o acho um pau no cu americano de cabeça fechada e irresponsável.
Também não precisaria admitir que eu amo o Undertaker. Amo de verdade, como se fosse uma figura mitológica, uma peça de uma história que eu me apeguei.
É possível que essa história – egocêntrico que eu sou – seja a história da minha vida. Mas também tem muito a ver com a história do próprio Undertaker.
Então hoje eu ainda vou ser o mosca e o que eu tinha para falar do homem que tem uma foto com um traficante de animais, que apoiou o Trump e que fazia o trabalho sujo do Vince eu vou deixar aqui.
Ele é um pau no cu, ele bateu no Kanyon sem necessidade, ele era o garoto que punia quem o Vince queria punido.
Vamos em frente.
A LÓGICA
Existe um comprometimento quando falamos de uma história, a famosa suspensão de descrença criada por detrás de cada narrativa.
Algumas ultrapassam a realidade material, a suspensão máxima de acreditar em mitologias e santos e na catarse das coisas.
Existe o potencial cultural de transcender a própria vida e se tornar uma história. Eu particularmente não acredito que Undertaker chegue nisso.
Outros lutadores como El Santo estão nesse patamar e que bom por isso. Nos Estados Unidos – e isso acaba se refletindo no Brasil por vários fatores – a história é outra.
Undertaker é uma catarse, uma figura, um signo. Ele é a imagem do John Wayne saindo porta a fora, uma moldura de luz quebrada por um forasteiro que se vai.
Lembrar dele é como abrir um livro de memórias, mas dentro dele não está descrito a vida do outro, mas a sua. Essa figura passou por você e por todos os outros.
Undertaker na história da WWE é como um Mad Max, o protagonista das outras histórias.
Objetivamente ele é todo personagem. O andar lento, o chapéu, a música, as luvas que em certas feitas eram grandes e roxas, outras vezes cinzas até se tornarem luvas de MMA.
O casaco longo poderia estar sujo de terra, da ultima cidade de madeira visitada em um tempo muito remoto. Undertaker poderia entrar com bosta de cavalo na bota que ainda estaria dentro do personagem,
Tudo isso são característica que foram construídas em 30 anos de carreira.
ANÁLISE
Há algum tempo atrás eu parei de pensar no Undertaker como um lutador que é bom ou ruim. Para o tipo de luta que eu gosto as vezes ele é MUITO RUIM e às vezes é muito bom.
A desculpa da narrativa é preguiçosa: Undertaker servia a história. “A luta era lenta até o momento que eu explodia” segundo ele mesmo.
Só que isso às vezes pode ser chato, metódico. O registro pode ser ridículo ou inexistente. Estava tudo dentro dos planos para o personagem, o que não faz disso necessariamente bom.
O fato é que funcionou e durante 30 anos, dentro de um produto ao qual ele se moldou, esse cavaleiro da morte andou mundo afora apanhando, batendo e contando histórias.
As histórias que são contadas também através de suas lesões, dos dedos que não se esticam mais, dos quadris prostéticos de plástico e titânio cirúrgico, polímeros que completam e agora são uma pessoa.
A LIÇÃO
O fato é que Undertaker me ensinou várias coisas na vida: a primeira é que seus ídolos vão te decepcionar.
Como eu disse, ele se choca muito com as convicções que eu tenho como pessoa. Não como mosca, o mosca gosta do Taker, não liga para essas coisas. O Mosca nasceu ao mesmo tempo que o Undertaker e ele entende que essa geração não aguenta muita coisa.
Mas eu sou dessa geração e acho tanto o Mosca quanto o próprio Undertaker pessoas ridículas.
Meu ídolo me decepcionou várias e várias vezes em suas frases e atitudes. Coisas que sinceramente, eu entendo de onde vem, mas não justificam sua existência.
O Undertaker também me ensinou que o mundo não é só o que eu vejo. Eu realmente acreditei em tudo o que eu vi e não vi. Acreditei nas histórias, na lenda.
Dentro de mim vive a crença da morte e renascimento dessa figura efêmera. Na consciência de um mundo material existe a lógica imaterial que uma entidade que não pode morrer resolveria suas pendências em um ringue 7×7 com três cordas, quatro cantos em frente a alguns milhares de pagantes.
Undertaker não me ensinou a acreditar – esse foi o meu vô – mas foi ele quem me ajudou a perceber que eu não preciso acreditar.
E nisso eu acredito, sacou? Em não acreditar eu acabo acreditando, na verdade que todas as coisas são falsas.
O FALSO
Eu vi o homem morto envelhecer e perder o vigor, não conseguir levantar mais, perder seus títulos, atrapalhar quem ele deveria ajudar, eu o vi passar vergonha.
Undertaker me ensinou que o tempo passa para todos, assim como outros esportistas acabam nos ensinando sempre.
Eu poderia ter professores melhores, mas quis o mundo que fosse ele.
Poderia, da mesma forma, gostar de pessoas mais corretas, lutadores melhores ou mais íntegros. Quis o mundo que eu acompanhasse a jornada de um imortal.
Eu o vi sobreviver a incêndios, sequestrar limosines, ser enterrado vivo, sacrificar pessoas, destruir corpos, lançar raios.
Olhos cínicos e crédulos se misturam nessa história. Eu fui feliz vendo tudo isso e fui triste vendo tudo isso.
E falo tanto eu eu eu porque, novamente, você também viveu outras coisas com outras pessoas. E para o Undertaker provavelmente todas essas experiencias têm outro gosto.
O REAL
Para ele o Undertaker não é real ou, por outro lado, é mais real do que para qualquer um, porque a dor física é única em sua existência.
E então vem a Wrestlemania 38 e o fim. O fim que veio na 28, que veio na 30, que veio no Survivor Series e depois da WM 34 e depois na 36.
Mais um dos fins, como livros de uma saga interminável. Eu assisto todos esses capítulos pensando em qual jornada acabará primeiro.
Um dia eu serei uma mosca nesse corpo morto e de certa forma eu já sou. Undertaker nunca viveu, está sempre morto, inexistente, foi só nossa ilusão, um reflexo no canto de olho.
Com um badalar de sinos ele vai aparecer uma última vez na sua imaginação e então….
O fim.
** Este texto reflete a opinião do WrestleBR mais do que qualquer outro das inúmeras obras já publicadas aqui. Obrigado, Mosca.