Estava eu, navegando pelas minhas redes sociais, quando me deparo com uma propaganda da Netflix sobre o lançamento de uma nova série, chamada Glow. Eu tinha um vago conhecimento sobre a federação feminina de wrestling dos anos 80 de mesmo nome, e quando vejo os ringues e as roupas características da época na chamada, logo penso em alguma série biográfica ou mesmo um documentário referente a ela. Porém, ao começar a assistir os primeiros episódios, me surpreendo ao me deparar com uma história bem construída, uma visão interessante sobre a luta livre para quem não conhece nada sobre esse mundo. Me surpreendi ainda mais com a boa recepção que ela recebeu, a série atraiu um público bastante diversificado, sendo uma diversão para os experts e uma verdadeira aula para leigos sobre o assunto. Isso superou e muito minhas expectativas, e assim, me vi na obrigação de fazer uma análise geral sobre o que assisti, o ponto de vista de um fã de luta livre sobre a primeira temporada de Glow. Espero que gostem.
A história gira em torno de Ruth Wilder, uma atriz desconhecida que tenta melhorar de vida entre uma audição fracassada e outra. Sem dinheiro, sem trabalho e com o remorso de ter traído sua melhor amiga com seu marido (pouco tempo depois do filho do casal ter nascido), ela acaba fazendo parte do elenco de um programa de luta livre chamado Glow. Se a pressão de se tornar uma lutadora sem a menor experiência não fosse o bastante, a vida de Ruth se complica ainda mais quando a amiga traída Debbie Eagan, furiosa por descobrir o caso dela com seu marido, decide fazer parte do show. Mesmo com essa situação desconfortável, as duas e todas as outras lutadoras enfrentam todos os obstáculos para que a Glow se torne um sucesso.
https://www.youtube.com/watch?v=-LKFqyeFpoE&t=14s
A série se passa nos anos 80, década cheia de alegria, cabelos estranhos e cores berrantes. Somos envoltos em uma trilha sonora nostálgica mesmo para quem não viveu aquele período, um clima repleto de referências que nos ambienta quase que automaticamente naquele tempo. Nessa mesma época, nomes como Hulk Hogan e Roddy Piper ajudam a popularizar a luta livre como uma mania televisiva, havendo assim o boom do esporte em nível internacional. Em meio a corpos minimamente esculpidos e entupidos de esteroides, as mulheres não tinham quase nenhum espaço para se apresentar, eram totalmente subestimadas. Suas lutas não ocupavam muito tempo nos cards, e na maioria das vezes, elas serviam como meras acompanhantes dos lutadores. Por isso, a Glow, programa que inspirou a série, foi importante para as mulheres nos ringues. O programa trazia uma hora de lutas femininas, o foco era totalmente no talento e em tudo que elas eram capazes de fazer, um marco para a divisão de lutadoras no pro wrestling. Mesmo trazendo histórias ficcionais dos bastidores, a série consegue demonstrar todo esse processo de busca de respeito das mulheres em um universo totalmente machista, e todas as dificuldades que ocorreram até isso acontecer. É tudo uma metáfora sobre o que acontece em diversos ambientes da sociedade, e a luta livre serve como um pano de fundo para tudo isso. A série brinca, por exemplo, ao inserir cenas de nudez desnecessárias de Ruth Wilder, após trazer um dialogo da personagem sobre o tratamento depreciativo da mulher no mundo do entretenimento. A Glow original serve como uma inspiração, a ousadia do espírito feminino contra os padrões estabelecidos.
Outro ponto interessante de Glow é que o espectador aprende sobre pro wrestling no mesmo ritmo que as personagens principais. Ruth e Debbie desconhecem por completo o esporte, caem de paraquedas naqueles ringues. A cada episódio, é mostrado todo esse universo paralelo da luta livre, gradativamente ensinando as personagens e o espectador. Elas percebem que da mesma forma que são tratadas pelos homens que comandam o show business, aquela arte é totalmente subjugada e marginalizada, fora que qualquer ideia que fuja do normal não é vista com bons olhos. Os conceitos artísticos para o programa do personagem Sam Sylvia, diretor e treinador das garotas, foram descartados por quem realmente quer injetar dinheiro na produção da Glow. Tudo bem que eram ideias exóticas e megalomaníacas, porém eram originais e ousadas, e foram substituídas por um produto completamente raso, estereotipado e até preconceituoso. Isso reflete o momento da luta livre naquela década, personagens sem profundidade a procura de uma identificação rápida com o público ou uma piada boba feita somente para divertir. Hulk Hogan era o patriota, Iron Sheik era o vilão árabe e Andre the Giant era, bem, um gigante. Não importava entender a motivação ufanista de Hulk Hogan, a razão de Iron Sheik odiar o povo americano ou os sentimentos que Andre the Giant tem por seu tamanho desproporcional ao mundo ao seu redor. Não, isso era irrelevante e de certa forma, até hoje é. Essa preguiça de pensar e a também preguiça de grandes monarcas do entretenimento de tentar arriscar em algo incomum vem se transformando ao longo dos anos, mas de fato nunca mudará.
Para um fã de wrestling profissional, é engraçado ver algumas participações especiais e easter eggs espalhados pelos episódios, e perceber que um espectador normal nunca terá conhecimento sobre o que aquilo representa. Como parte do elenco, a atriz que interpreta a “The Welfare Queen” é a lutadora conhecida como Awesome Kong (ou Kharma, em sua passagem pela WWE), uma das wrestlers femininas mais dominantes dos anos 2000. Além dela, John Morrison / Johnny Mundo marca presença no primeiro episódio como o treinador Sally, sem o grande público ter a mínima ideia de sua carreira repleta de voos de escadas e flips sensacionais. O ícone das indies, “The Fallen Angel” Christopher Daniels, também dá as caras aplicando sua marca registrada, conhecida modestamente como Best Moonsault Ever. Alguns outros nomes conhecidos da luta livre que podemos encontrar nessa temporada são Alex Riley, Kazarian, Joey Ryan, Brodus Clay, Carlito Colón, entre outros. A “Chavo’s Boxing Gym”, academia onde as garotas treinam, é uma clara homenagem ao wrestler Chavo Guerrero, membro de uma das mais lendárias famílias da luta livre e treinador das atrizes nos bastidores da série. Aliás, coincidentemente, seu tio Mando Guerrero foi o treinador das lutadoras da Glow original dos anos 80. A “Dusty Spur”, hotel onde as lutadoras se alojam em determinado momento da série, é um possível tributo ao clássico lutador Dusty Rhodes.
Uma recomendação que eu faço para você que quer se aprofundar mais na história da Glow da década de 80 é o documentário Glow: the Story of Gorgeous Ladies of Wrestling. Ali você percebe que o personagem Sam não se compara com o verdadeiro diretor que serviu como inspiração, Matt Climber, em seu tratamento pesado com as mulheres. Como elas afirmam no documentário, ele era uma pessoa exigente e instável, pressionando as lutadoras ao limite de seus corpos. O produtor David McLane se mostrava também tão excêntrico quanto Bash, sua “contraparte” na série. Você acha as personas dadas para as atletas muito extravagantes ou mesmo insultantes para se passar em rede nacional? Meu caro leitor, na Glow original existia uma personagem caracterizada como uma guerrilheira cubana, uma nazista e uma terrorista chamada Palestina… Ah, os anos 80, terra de ninguém. De qualquer forma, você entenderá melhor o impacto delas na época em que surgiram, e o motivo para que tenha acabado mesmo com um alto índice de audiência.
Não sei se Glow consegue ter fôlego para mais temporadas, mas em sua primeira, ela se mostra bem irreverente, uma boa pedida para quem está a procura de uma comédia leve com algumas pitadas dramáticas. Ela trata de assuntos sérios, como o empoderamento feminino e o preconceito, ao mesmo tempo que consegue disseminar uma cultura alternativa para um grande público, de forma discreta e eficaz. Espero realmente que a série não seja largada de lado, muitos fios soltos foram deixados pelo caminho e merecem ser respondidos. Quem sabe podemos ter um crossover entre as lutadoras da Glow dos anos 80 com a Glow atual? Ou mesmo ter a presença de wrestlers lendários da época, ou até lutadoras do calibre de Lita e Trish Stratus. Seria épico, no mínimo.
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