Terça-feira, 9 de agosto de 1988.
Era mais um dia comum pra mim, um adolescente de 16 anos, que trabalhava numa quitanda na Rua Sete de Setembro, no Centro do Rio de Janeiro.
E o pior era que a semana tinha acabado de começar, mas eu já não aguentava mais.
Só pensava em sair dali, jogar uma bola, fingir que eu era o Maradona, tomar uma coca-cola e dar uma descansada.
Meu expediente só acabava às cinco, então eu ficava ali, esperando uma ordem do Seu Carlos, conversando com a Odete, falando besteira com o Claudio e o Beto.
Até que o dia tava bonito, mesmo sendo inverno.
“Melhor assim, jogar bola com chuva não dá” – pensava, enquanto olhava algum sinal de nuvens no céu.
Não choveu, ainda bem. E às cinco da tarde, me despedi do Seu Carlos, da Odete, do Claudio e do Beto.
É hora do futebol.
“Fim de tarde, Largo da Carioca”
Pra chegar no Aterro do Flamengo, onde ficava a quadra, levava uns 10 minutos de bicicleta.
Mas o futebol era só às 19h, então tinha tempo de sobra pra dar um rolê, comer um salgado e chegar a tempo.
Então, peguei a minha bicicleta, segui em frente na Sete de Setembro, virei na Ramalho Ortigão, depois virei à esquerda na Rua da Carioca e segui reto, na intenção de chegar no Largo da Carioca e comer aquele salgado e tomar aquele refresco que sempre salva.
Quando cheguei no Largo da Carioca, me deparei com uma festa em pleno fim de expediente.
“Putz! A festa do tombamento” – tinha me esquecido completamente que, todo ano, tinha uma festa para comemorar que a Rua da Carioca havia sido tombada.
Sim, a festa era numa terça-feira, no meio do expediente. Então, a galera saía do trabalho e já parava por ali.
E não, ela não caiu. Quando uma rua é tombada, ela vira patrimônio histórico da cidade. Isso quer dizer que ninguém pode fazer merda nela, só se o governo deixar.
Na festa tinha de tudo: música, dança, competição de corrida do saco, comida.
Mas, tinha uma coisa acontecendo lá no meio do furdunço que me deixou curioso. Fui me aproximando, me aproximando, e vi uma galera muito animada com aquilo. “Que parada é essa?”, pensava.
Consegui chegar bem perto, mesmo com a bicicleta. Então, percebi que tinham duas mulheres com uma roupa de ginástica, brigando dentro de um ringue de boxe.
E o mais louco é que tinha um monte de marmanjo parado em frente ao ringue, assistindo aquilo com muita empolgação. “Dá nela”, “derruba a gata”, eram algumas coisas que eu ouvia.
Decidi perguntar pra um senhor que tava do meu lado, sobre o que tava rolando ali
— Isso aí é telecatch. É tudo uma marmelada. – respondeu mau-humorado, mas sem parar de prestar atenção na luta.
— Se é marmelada, por que tá todo mundo assistindo? – perguntei, curioso igual a qualquer adolescente.
— Tu nunca viu filme, não? E circo, tu nunca foi? Porra. – respondeu, agora um pouco mais carioca do que na primeira vez.
— Saquei. – Tentei não cutucar a onça com vara curta.
— Tá vendo aquele guarda ali? Ele lutava também. Hoje é o terror dos camelôs daqui. – o velho não se conteve e decidiu dar essa informação, mesmo que eu não tivesse perguntado, enquanto apontava para um senhor de barba vermelha e seus 50 e poucos anos.
Eu conheci esse senhor, anos mais tarde, mas isso é papo pra outro dia. Voltemos ao que importa: o que estava acontecendo no ringue.
Alguém perguntou quem eram as lutadoras. Outro, prontamente respondeu: “É a Panterinha e a Gata Mansa”.
A Panterinha parecia ser mais velha e que a qualquer momento, poderia destruir a adversária, porque era claramente mais forte, e usava isso pra dominar a luta. Fazia o famoso clinch, agarrava por trás, derrubava de um lado para o outro.
— Eu conheço Panterinha, ela mora por aqui. Outro dia, um marmanjo tentou se engraçar pra cima dela, ela foi lá e deu uma porrada que ele ficou estirado no chão. – disse o velho, rindo e gesticulando, enquanto relembrava o episódio.
A Gata Mansa parecia ter a minha idade. Ela era magrinha, mas era ágil pra caramba. Enquanto a Panterinha vinha com a força, ela só dava golpes na hora que tinha uma brecha. Era um chute daqui, um salto dali, um soco. Precisão é o nome dela.
— Casei vinte merréis na Gata Mansa. – disse o velho, mais amigo do que nunca.
O começo foi uma dominação total. A Panterinha atacava, usava a força, deixava a galera impressionada. Mas, depois de algum tempo, a Gata Mansa se aproveitou que era mais ligeira e partiu pra cima da rival, que ficava cansada a cada minuto que passava.
A luta teve três rounds e durou uns 20 minutos no total.
E não é que o velho tava certo? A Gata Mansa levou a vitória pra casa e deixou os marmanjos muito animados, porque torciam pra ela, provavelmente por não parecer ser a favorita.
A gente gosta de um azarão, né?
Eles se abraçaram, gritaram o nome dela, dançaram. O velho, então, tava todo serelepe.
— Casei vinte merréis e vou sair com 100 – contou, com aquele sorrisinho safado de quem acabou de vencer na vida.
Mas a Panterinha não gostou muito do resultado, não. Reclamou com o juiz e até tentou reverter, mas só conseguiu uma medalha de honra ao mérito, que um coroa veio entregar no fim da luta.
Já eram mais ou menos 6 da tarde. Tava escurecendo, e eu ainda precisava chegar ali no Aterro pra bater uma bolinha. Não podia perder o futebol.
Ah, e ainda tinha esquecido de comer o salgado. Bateu a fome, também. Mas, dava tempo de fazer tudo.
“Telecatch, marmelada, que nem filme…”, pensava sobre o que havia acabado de assistir. O ringue era de boxe, mas era totalmente diferente. Valia tudo.
Como a galera poderia gostar tanto de uma marmelada?
Será que isso passa na tv?
Telecatch…
Esse texto é baseado em uma notícia do Jornal do Brasil, do dia 10 de agosto de 1988. A autora é Teresa Cristina Levy, e fala sobre duas lutas femininas de telecatch que aconteceram durante a comemoração do aniversário do tombamento da Rua da Carioca, no Centro do Rio de Janeiro.
O link para acessar a notícia, cujo título é “O ringue de cada dia”, está aqui: http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=030015_10&pesq=panterinha%20telecatch&hf=memoria.bn.br&pagfis=170341
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